9 de fevereiro de 2010

Michel Lacombe

O dia 27 de fevereiro de 1972 foi um dos mais tensos para a família Reyes. Lauriberto, o primogênito, havia sido morto aos 26 anos. Além do luto, os parentes tinham que dividir espaço do velório com agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) – em uma proporção de quase um para um – e se preocupar com o boato de que estudantes do Centro Acadêmico Armando de Salles Oliveira (Caaso), da USP São Carlos, iriam até o Cemitério Nossa Senhora do Carmo, na cidade do interior de São Paulo, roubar o corpo. O caixão foi colocado acima da visão das pessoas e quem quisesse dar a última olhada para Lauri precisava subir nas cadeiras.
Mas essa não era a única tragédia da família, que, apesar de ser de direita, possuía um filho que lutava contra a ditadura militar, instaurada no Brasil em 31 de março de 1964. Quatro anos antes, o pai de Lauriberto havia morrido em virtude de um atropelamento, em uma noite de outubro. Poderia até parecer uma sanção, um aviso; no entanto, era apenas coincidência.
Esse mesmo dia foi marcado pela primeira prisão de Lauri, em Ibiúna, no interior paulista, durante a realização do 30º Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes). Sob forte esquema de segurança, o filho voltou a São Carlos para se despedir do pai. A permissão só foi conseguida devido a amigos influentes, políticos da época, que de branda não tinha nada. Foi a última vez em que a família o viu com vida.
Algumas décadas depois, uma integrante da família que prefere não revelar sua identidade comenta o sentimento dos Reyes. No começo dos anos 70, ela era criança. Sua primeira lembrança de Lauriberto é a de um homem alto, cabelos ruivos e sério, um tipo não muito simpático. “Na verdade ele era baixo”, esclarece. “Até hoje a história não é comentada em família, pois traz lembranças dolorosas. Quando se fala disso, a história é tratada mais como a dor da perda, o quanto os familiares sofreram com isso.” A dor maior é a da mãe, dona Rosinha. A cabeleireira, antes risonha e serena, tornou-se uma pessoa triste, calada.
A verdade só foi revelada em 1979, ano do início da abertura política, marcado pela volta dos exilados. E veio através de uma prima de Lauriberto. Uma das histórias falava da casa onde ele, ainda criança, morou, nas esquinas das ruas Dona Alexandrina e General Osório, no centro de São Carlos. Antes, o mesmo local, que hoje dá lugar a um escritório despachante, era habitado pela família Reyes. Para perto dali havia se mudado um coronel reformado da Marinha, com o objetivo de conseguir informações sobre o cotidiano da família e, sobretudo, a respeito de Lauri. Logo após a mudança da família, o militar também foi embora.

Fachada do prédio onde a família Reyes morou no centro de São Carlos.

Após a primeira prisão de Lauriberto, Rosa, a mãe, mudou-se para um edifício, o mais antigo da cidade, nas esquinas da avenida São Carlos com a rua Padre Teixeira. As principais lembranças do espaço são a sala grande, a visão da janela para avenida principal da cidade e a comemoração do tricampeonato mundial da seleção brasileira na Copa do México, em 1970. Isso na consciência das crianças. Os adultos enfrentavam problemas: todas as pessoas que traziam qualquer tipo de pacote eram revistadas, por agentes ou pelo próprio porteiro.
A militância de Lauriberto começou em São Carlos, onde integrou o grêmio estudantil do colégio Diocesano La Salle. Aprovado no vestibular, seguiu para São Paulo, onde cursaria Engenharia na Escola Politécnica da USP. Graças às amizades influentes da família, que conseguiram trazê-lo para o velório do pai, algumas prisões foram evitadas. Também por meio delas, ele ficou escondido, após voltar de Cuba, onde passou alguns anos exilado. Para chegar até lá, participou, em novembro de 1969, do sequestro de um avião da Varig que fazia o trajeto Santiago/Buenos Aires e teve a rota desviada.
O fim da história de Lauriberto José Reyes aconteceu na capital paulista, à rua Serra de Botucatu, no bairro do Tatuapé (zona leste da cidade). “A notícia inicial foi que ele estava participando de uma situação de desordem e reagiu a uma ordem de prisão. Como estava sem documentos, foi morto. Mas para a família, foi uma emboscada. E na época, infelizmente, ele era tratado como bandido, terrorista, sequestrador”.
Essa, contudo, não foi a única perda que a família teve durante o período militar. Uma história que até hoje não foi esclarecida é a de um primo de Lauri, José Geraldo Levy, que morreu afogado no Rio de Janeiro, em 1971. “Ele era um bom nadador. A gente suspeita que essa também foi uma morte por questões políticas. Mesmo ele não sendo ativista, era muito falante.  Mas essa morte não se comenta. Para a família ficou como acidente, só que foi muito estranho”.
Após tantas décadas de silêncio e dor, dona Rosinha conseguiu um de seus maiores objetivos: resgatar a imagem de seu filho. O fato aconteceu quando o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu indenizar parentes de vítimas da ditadura militar. “Ele foi comprovadamente morto pela ditadura. E isso [o reconhecimento da autoria] foi muito importante, não pelo dinheiro, mas pelo nome. A maior dor da mãe era a situação de ele ser tratado como bandido”.

A pacata praça Lauriberto Reyes, em São Carlos.

Outra homenagem significativa e, por consequência, motivo de orgulho para dona Rosa foi a escolha, em 1997, do nome de Lauriberto José Reyes para uma praça tranquila e arborizada, entre os bairros Santa Marta e Jardim Centenário, em São Carlos. A homenagem veio de um projeto do então vereador Emerson Leal.
 A placa foi roubada, mas a família se orgulha do reconhecimento da história de Lauriberto.

A placa de bronze instalada na época não existe mais. Roubada não se sabe quando, ela foi encontrada e recolocada no mesmo local. Mas sumiu outra vez e nunca mais foi vista. Junto dessa, outra menor continha um poema escrito por Lauri. Para a família, o que importa é que a história do parente reconhecidamente morto pela ditadura foi reconstruída. “Hoje não nos preocupamos em saber o que aconteceu porque tudo está esclarecido. A história dele é conhecida e reconhecida”.

Alguns dados da reportagem foram obtidos do portal Desaparecidos Políticos (clique aqui para visitá-lo).

fonte: Site Jornalirismo
Fotos: Michel Lacombe

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São Carlos, São Paulo, Brazil
Daidy Peterlevitz é aposentada, com qualificação para lecionar desde a pré-escola ao Colegial (Matemática e Física).Tem trabalhos publicados na Antologia “A Pena e a Lua”, da APEBS - Associação dos poetas e escritores da Baixada Santista.É autora dos livros As Duas Faces da Mesma Moeda e Quatro Bruxas no Elevador, lançado na Bienal do Livro, em S.Paulo. É autora do projeto DEMBLI, que facilita a circulação de livros, em escolas sem bibliotecárias. Trabalha em seu projeto no qual afirma que o bebê pode e deve aprender a ler. Também fez parte do antigo "SEROP" que funcionava no G.E Oswaldo Cruz, em São Paulo, sob a direção do sr.Jocelyn Pontes Gestal. Era orientadora de Ciências. O grupo, estudava a filosofia e a pedagogia de mestres, preparava apostilas, ia à inúmeras escolas, em S.Paulo e arredores, levando orientação diretamente aos professores ou,se distante como Sta. Izabel, aos diretores, que as passavam aos professores. Atualmente, escreve para seis jornais e, a todos agradece pelo espaço cedido.

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